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"O diabo desta vida é que entre cem caminhos temos que escolher apenas um, e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove." Fernando Sabino

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A misteriosa chama da Rainha de Hanna

Estaria um pouco sensível ao tempo? Acho que não... A memória é algo que impressiona cada um de nós, pois ela pode escorrer entre seus pensamentos nas horas e lugares mais impróprios para tal coisa, basta uma Madeleine como a de Proust, para tudo o que se guardava no mais profundo da sua alma, vir à tona. Todos nós possuímos nossas Madeleines, seja um cheiro de algum perfume, uma música, um nome, um gosto, um gesto, um texto...
Retornando ao campo da Teoria da História, podemos nos deparar com Maurice Halbwachs, que trata a memória como interligada a dois tipos: a Memória Individual e a Memória Coletiva. Tal relação se manifesta, por sua vez, no individuo. A formação da Memória Coletiva é recheada de lembranças individuais, porem, elas não se confundem.
Lendo um maravilhoso livro de Umberto Eco intitulado “A misteriosa chama da rainha Loana”, essas questões tão complexas pulularam em minha mente tão desocupada. Juro que tentei fugir um pouco de textos acadêmicos nesse mês de janeiro, mas como eu já afirmei, a História e suas ramificações estão presente em nós, enraizada em nossa própria vivência, que de vez em quando se torna amplamente vazia, mas mesmo assim estão aqui dentro. Tal questão voltava-se para a Memória e a História. Confesso que tenho pouca carga de leitura para esboçar alguma opinião, porém, devo arriscar.
Umberto Eco, em minha opinião, escreveu um livro simplesmente maravilhoso. Ler sua narrativa é como mergulhar na fala de uma pessoa que está a sua frente contando sobre a melhor fase da sua vida: a infância. A memória escolhe eventos que marcam o individuo. Essa é a memória individual. Seria como uma criança, sem nada entender ainda de mundo, que observa de longe os preparativos de um funeral. Ela sabe o que é a morte, mas não sabe por que aquela pessoa morreu. Apenas repara que durante a cerimônia, há a presença da bandeira do Brasil sobre o caixão e isso a marca. Ela não entende o porquê daquele caixão estar com a bandeira da nação enquanto outros que observou durante sua pequena vida, nunca a possuíram. Daqui algum tempo, ele vai descobrir que aquele funeral era de algum soldado da missão de paz que morreu na tragédia do Haiti. Aparentemente, nenhuma grande ligação se forma na mente da criança. Só daqui algum tempo, quando a História lhe mostrar o acontecimento é que o individuo vai saber que esteve no bojo da história, que presenciou seu fragmento.
Bem, voltemos a Umberto e a Memória. De acordo com Halbwachs, a memória individual não se encontra fechada ou isolada do meio em que se encontra inserido. Muitas centenas de vezes, para se recorrer a algum tipo de memória, nós precisamos de um estimulo, como Proust e sua Madeleine. Interessante é quando Halbwachs cita que a nossa memória pode ser ativada também pelas lembranças de outras pessoas. Ao ler o livro de Eco há uma passagem em que Yambo recorre a Gianni para acender a chama de sua memória. Foi em vão para o protagonista de Eco, que perdeu a memória com um AVC, mas não é em vão para nós.
Acontecimentos coletivos causam lembranças individuais. Isso é fato. Mas as lembranças individuais também ajudam a formação de uma memória coletiva que é construída de acordo com o que nós lembramos, pois existem pontos de referencia na própria sociedade. Dessa forma, para Halbwachs, a única memória verdadeira é a coletiva, uma vez que a memória individual é construída a partir de um lugar social, ou seja, devido a influencia do meio. É como um circulo vicioso.
Umberto Eco, em minha opinião, meio que transita nesses dois elementos da Memória.
Na primeira parte do livro, podemos notar que a Memória que Yambo possui é uma memória coletiva, uma memória que não possui nenhum sentimentalismo presente nas lembranças pessoais. O protagonista sente essa falta de ligação sentimental individual, já que ele não consegue estabelecer a relação que Halbwachs afirma: a de que a Memória Individual só pode ser ativada através da Memória Coletiva.
Como Yambo, nas palavras de Eco: “Desculpe. Não consigo dizer nada que me venha do coração. Não tenho sentimentos, só ditos memoráveis.” (p. 24)
Yambo, meu querido protagonista, na primeira fase do livro consegue falar, citar e lembrar fatos presentes na memória coletiva, coisas como Napoleão e a Guerra do Golfo, mas não consegue realizar uma ligação com seu sentimento de lembrança ligado a tais fatos. Não consegue lembrar o porquê de Napoleão o marcar tanto, por exemplo.
Tomemos cuidado em certos pontos. O protagonista de Eco possuía também uma memória intelectual altamente exuberante. Sabia de cor citações de vários autores, vários fatos históricos, era um homem culto e politizado. Mas não sabia fazer relações de tais fatos com sua vida.
Perder a Memória é como perder sua identidade. Não só a identidade individual como a coletiva, já que se rememoram os fatos, mas não o porquê desses fatos serem tão importantes para o individuo.
Resumindo, o enredo do livro de Umberto Eco é uma viagem a infância de Yambo. Uma narrativa tão rica e ilustrada sobre a Itália dos primeiros anos do fascismo até o final da Segunda Guerra mundial. Entrar na memória de Yambo através de Eco é uma viagem maravilhosa pelo tempo, pela História. Fascinada estou. Imagina, enquanto o pequeno herói do romance se deliciava com livros e histórias Cult e em situações de alto risco e de coragem em sua infância, euzinha só sabia ver televisão e comer chocolates...
Piadas a parte, “A misteriosa chama da rainha Loana” realmente mexeu comigo, pois além de suscitar questões relativas a memória, que é complexa, consegue passar um enredo simplesmente emocionante e daqueles que você não consegue desgrudar. Confesso que demorei a ler o livro, mas porque comecei em tempos de aula. Agora nas férias consegui finalizá-lo e sinto uma nostalgia imensa. Parece que o livro de Umberto Eco foi minha Madeleine, pois rememorei inúmeros fatos dos meus melhores anos da infância...
Enquanto para Yambo a rainha que trazia a chama que teria o poder de fazer sua memória reviver era Loana, para mim, Eleanor, aquela que faz a chama da lembrança arder é a Senhora de Hanna, a jovem sacerdotisa das florestas esquecidas que cultivou questões únicas da minha adolescência. Escrever realmente é a melhor forma de se guardar o presente para o futuro, mesmo que esse presente não seja lá uma grande narrativa, será posteriormente uma chave para as lembranças, caso se sofra um AVC e se perca a memória afetiva ligada à memória coletiva...
Enfim, ler “A misteriosa chama da Rainha Loana”, além de se deliciar com um belo romance, aprende-se muito de História e ainda mais sobre a questão da Memória. Essa questão que suscita grandes reviravoltas no mundo...
Por isso escrevo diários e revejo sempre a minha querida Senhora de Hanna. As vezes é necessário lembrar.

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