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Mantiqueira - Região de Barbacena - MG |
Percebi com aquele vento, com aquele verde, com aquele cheiro, que não era nada daquilo que eu pensava. Percebi quando olhei inclinado, que aqueles olhos não eram aqueles olhos. Percebi que não eram mais aquelas mãos. Alguma coisa havia mudado. Podia ser o clima, a noite, o barulho infernal das buzinas pela manhã e o arrastar dos móveis pela tarde. Podia, mas não era. Eu havia errado o gosto. Eu havia errado tudo. E agora, que a noite me invade e me toma o corpo cansado com a ansiedade dos meus dias, penso e relembro os dias estranhos que precederam minha iluminação. Creio que não fui eu que acordei diferente, creio que apenas não enxergava o que queria. Hoje enxerguei e prefiro o Lethes, prefiro Anúbis pesando minha alma e Miguel me puxando pela mão. Encaminhe-me ao paraíso, senhor de armadura brilhante. Meu coração é morto e fadigado. Minha alma está morta e fadigada. Meus sonhos estão estraçalhados e não quero mais tempo. Percebi hoje com aquele vento, percebi hoje com aquele verde, com aquele cheiro que não quero ter nada daquilo comigo. Por isso me leve pela mão, senhor da armadura brilhante. Nada de cavalos, dragões ou carros, apenas o enlace doce de suas mãos. Nada de penas ou balanças. Nada de eterno ou de alma. Nada de amor, nada de esperança, nada de nada. O caos reina em dois reinos distintos de si. Não se pode ter o sol quando o que se quer mesmo é a companhia da lua… Não se pode querer andar junto quando o destino lhe quer sozinho…
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A minha mãe , quando me contou a estréia do Bolero, falou-me da sua emoção, dos gritos, dos aplausos e dos assobios, do tumulto. Algures na mesma sala encontrava-se um homem que ela nunca conheceu, Claude Lévi-Strauss. Como ele , muito mais tarde, minha mãe confiou-me que aquela música mudara a sua vida.
Agora, compreendo porquê. Sei o que significava para a sua geração aquela frase repetida, seringada, imposta pelo ritmo e o crescendo. O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma raiva, de uma fome. Quando termina em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes atordoados."
Agora, compreendo porquê. Sei o que significava para a sua geração aquela frase repetida, seringada, imposta pelo ritmo e o crescendo. O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma raiva, de uma fome. Quando termina em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes atordoados."
J.M.G. Le Clézio, in " A Música da Fome ", Edições D. Quixote, 2009.
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