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"O diabo desta vida é que entre cem caminhos temos que escolher apenas um, e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove." Fernando Sabino

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Libertadores, quem somos?

"Eu queria não ganhar todos os títulos da minha carreira e ganhar o título contra o preconceito contra esses atos racistas. Trocaria por um mundo com igualdade entre todas as raças e  classes. A gente tenta esquecer, competir em campo. Fico chateado com isso em pleno 2014, um país tão próximo da gente, mas infelizmente aconteceu. Já joguei longe, joguei vários anos na Alemanha e nunca vi isso na minha vida." Paulo César Tinga, após o jogo contra o Real Garcilaso em Huancayo, no Peru.
 OS LIBERTADORES DA AMÉRICA
Roberto Saavedra Walker - fonte: 
http://blogdodelamuta.blogspot.com.br/2010/07/origem-do-nome-copa-libertadores-da.html
A competição mais importante e tradicional da América começou para o time do Cruzeiro. Começou com um jogo difícil e triste, e não difícil e triste pela estrutura, pelos jogadores adversários, pela ausência da água no vestiário, pela altitude ou do placar de 2x1 para o Real Garcilaso. Difícil e Triste pela atuação da torcida peruana em meados do segundo tempo de jogo.
Tinga, um dos jogadores mais carismáticos do Cruzeiro, sempre se destaca na partida, seja pelos toques de bola, correria ou seja pelos dreads que ostenta. Contudo, ontem Tinga não se destacou por nenhum desses motivos. Infelizmente, o buraco foi mais embaixo e deixou uma legião (e que bom!) de pessoas indignadas:
Toda vez que o Tinga colocava o pé na bola, o estádio vinha abaixo com vaias e com sons que pareciam imitar um macaco. 
Parece mentira, se a gente conta assim. Mas infelizmente foi verdade e acendeu em mim várias perguntas sobre o cotidiano de nosso futebol, que acaba sendo um reflexo de nosso dia-a-dia. 
O Brasil é mestiço, isso não se pode negar. Contudo, o preconceito existe e atua de forma tão sutil quanto atroz. Disfarçada de "brincadeira", as ofensas enchem os lugares. E nesse quesito, o racismo faz companhia a intolerância religiosa e a homofobia. Tinga ficou chateado de ver um povo mestiço como a gente, o vaiar em pleno século XXI.  E isso não serve apenas para os peruanos, serve para nós também, brasileiros.
Não somos uma democracia racial. Não somos um país que respeita as minorias. Não somos um país que cuida de suas feridas, ao contrário, nós somos um país que gosta de deixar feridas abertas e sangrando.
Sangrei ontem e continuo sangrando. A Libertadores tem esse nome em homenagem aos "libertadores da América". Homens que lutaram para libertar a América do controle das metrópoles europeias e que queriam instaurar um sistema mais justo para aqueles que estavam vivendo aqui. Simon Bolívar foi um dos mais notáveis libertadores. Bolívar era um dos libertadores que queria o fim da escravidão. O nome da competição foi duramente maculado ontem a noite em Huancayo e deixou milhões de pessoas em estado de perplexidade.
Será?
O futebol é um dos esportes onde a manifestação das torcidas é sempre algo que chama atenção, seja pela festa bonita que faz no estádio, apoiando o clube e seus jogadores ou seja em atos de vandalismo, violência e preconceito. O estádio de futebol é o local onde todas a máscaras caem. Lá, xingar o juiz ou a torcida adversária abre caminho para a "brincadeira do cotidiano" se transformar em violência, tanto física quanto moral. Os atos de violência são, nada menos, que a materialização das palavras  de "brincadeira" (e aqui, eu infelizmente acabo me enquadrando) e ofensivas que usamos contra os adversários.Nem todos possuem a capacidade de abstração para separar uma brincadeira de uma ofensa (isso porque a dita brincadeira não é brincadeira pra quem é o alvo) e nem todos que ofendem estão brincando. Eis o ponto. 
Todo dia a gente "fala, zoa, humilha" o outro e diz que é brincadeira. Aí, quando chega em um estádio de futebol, onde as emoções estão a flor da pele, o monstro criado pela inocente brincadeira sai. Sai porque não se tem abstração do que se faz. E cá pra nós, quem faz esse tipo de brincadeira cotidianamente sabe muito bem o monstro que alimenta. Se brinca aqui, se fala ali...  "O que tem de errado fazer uma brincadeira em um lugar de distração, como o estádio de futebol?". "Bicha, viado, filho da puta, macaco, o juiz vai morrer"... Qual a diferença desses xingamentos em um meio de brincadeiras entre amigos e um estádio de futebol?
Aí eu friso a hipocrisia da sociedade: O problema é que no estádio todos estão vendo!
Se não nos policiarmos contra isso, o ato criminoso do racismo continuará existindo. Falta conscientização, falta educação (e educação que eu falo é aquela dada por PAI E MÃE, porque filho malcriado não pode ser salvo apenas pelo coitado do professor), falta humanidade de se enxergar no outro. 
A ofensa aqui é gerada todo dia: contra a mulher que é chamada de puta quando usa uma roupa mais curta, contra o homossexual que é chamado de viadinho só porque expõe sua sexualidade, contra o negro que é chamado de macaco por causa da cor de sua pele, contra o índio que é chamado de folgado porque sua cultura sempre foi diferente da ocidental, contra as religiões afro-descendentes que cultuam orixás e dançam a macumba e são chamadas de "seitas do capeta".
"É só uma brincadeira". Não, não é. Sabe porque? Porque toda brincadeira tem um fundo de verdade e se isso fosse mentira, esse ditado não seria ditado e nem seria popular. Tudo o que falamos e fazemos causa bem ou algum dano. Somos responsáveis por todos os nossos atos, seja em meio a uma roda de amigos, seja publicamente, seja no escuro de quatro paredes. Somos responsáveis por todos os nossos atos e palavras "ditas e malditas".
Nesse ponto, "Liberdade de expressão" não pode ser usada como argumento, porque liberdade de expressão perde a legitimidade quando ela passa a ofender, a humilhar, a machucar o outro.
Reflitam, meus amigos. Nossas brincadeiras inocentes causam danos irreparáveis e muitas vezes ignoramos isso, porque nunca nos colocamos no lugar do outro. Além de tomarem proporções que abominamos, como a de ontem.
E aí eu pergunto: Libertadores, quem somos?

Paulo César Tinga - Jogador do Cruzeiro Esporte Clube que foi hostilizado em jogo da primeira fase da Libertadores 2014.

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