Vou
ser sincera, destruíram minha auto-estima ainda quando era adolescente. Destruíram
da pior maneira e, até hoje, sinto as reverberações do desmoronamento daquilo
que eu gostava de ser.
Mas
vou ser mais sincera ainda: sobrevivi e sou muito feliz como eu sou. Do desmoronamento,
eu construí um reino lindo, colorido e com unicórnios, rá!
Brincadeiras a parte, acabei
de ler um texto de uma adolescente negra que se intitula "Não nasci pra ser bonita: a autoestima da mulher negra". A jovem de 16 anos soube lidar melhor do
que eu com 16, com as coisas desse mundo preconceituoso em que vivemos.
Diferente
da jovem Thaís Vieira, não foi um médico que quis me ensinar como eu deveria me
vestir, ou usar o meu cabelo. No meu caso foi pior, bem pior, porque o tal do Bullying vinha daqueles que eu achava
que eram meus amigos, que gostavam de mim.
No
meu caso, o que incomodava era o meu cabelo. O cabelo que não se enquadrava no
estilo das minhas coleguinhas de escola, que eram todos lisos. Sim, lisos, nada
daquilo que hoje é chamado “ondulado Gisele”. Esse ondulado era abominável para
minhas coleguinhas, que viam a chapinha como a melhor amiga.
Só que
eu gostava do meu cabelo. Ele era rebelde, era chato, mas era meu e eu gostava
dele. Gostava muito de colocar borboletinhas, florzinhas, laços no cabelo. Só que
as pessoas me fulminavam, chegava, até mesmo, a me humilhar com comentários
desestimulantes e racistas, coisa que na época, eu não percebia, julgava que eu
era o problema.
O problema
não era eu, era o que eu representava. Aquilo diferente, aquilo que batia na
cara deles como algo fora do padrão. Hoje consigo perceber isso, eu era uma
afronta. E meio que inconscientemente eu me mantive no meu padrão. Não alisei o meu cabelo como as minhas amigas queriam,
não parei de usar meus lacinhos coloridos. E se pensam que isso são coisa de
criança e adolescente, até hoje sofro com perguntas do tipo “porque você não
escova o seu cabelo? Ele deve ficar tão mais bonito...” ou “porque vc usa essas
coisas no cabelo?”
Aliso
quando eu quero e não porque querem. Não gosto de padrões porque sofri com esse
enquadramento todos os anos da minha adolescência. E esses momentos de agonia
ainda me assombram. Já pensei em procurar psicanalista, mas depois penso que
esse problema é do outro, não meu. Eu não sou a racista ou machista ou
homofóbica ou o Diabo dessa bagaça.
Repassando
memórias, acabo de me lembrar de mais uma cena, e lembro exatamente de como me
senti. A memória é algo incrível, com um estimulo conseguimos nos lembrar de
todos os detalhes de algo que estava guardado no mais profundo lugar de nosso
imenso guarda-roupa cerebral.
Era intervalo
e estava na fila da cantina e uma coleguinha minha, morena também, com uma pele
linda de herança indígena, olhou pra mim e disse: “você não tem vergonha dessa
sua cor encardida?” Eita que isso foi uma bigorna gigante caindo sobre mim. Não
lembro de uma reação sentimental, lembro de uma reação prática: peguei meu
braço e colei no braço dela e falei: “uai, mas são quase da mesma cor”. Ela deu
de ombros dizendo que eu tava doida. E eu continuei insistindo, “ei, a nossa
cor é parecida!” O que me incomodava naquele momento, hoje eu consigo perceber,
não era o fato dela me chamar de encardida, era o fato dela não se enxergar
também como tal.
O
preconceito é assim. A gente enxerga no outro, aponta no outro, aquilo que a
gente odeia na gente. E quer ver o outro sofrer da mesma forma que sofre. A menina
ter me chamado de encardida me deixou triste porque realmente eu não tinha uma
cor bonita, eu não era dourada, eu não era bronzeada o tanto que EU queria. É engraçado,
que olhando para esse passado, eu vejo que eu me forjei buscando a diferença,
diferença que era apontada como algo negativo. Pelo menos consegui transformar
algo que destrói uma pessoa em algo positivo.
Todo mundo
sente falta da época da escola. Incrível como eu não sinto nenhuma. Não sinto
nenhuma porque as pessoas que eu, na época, julgava como amigos eram aquelas
que mais me afundavam, que mais me denegriam. Claro que não generalizo, tenho
amigos de infância e adolescência que são eternos, apesar de alguns terem
orgulho demais para atravessar a ponte... mas isso não vem ao caso agora.
O que
vem ao caso é que admiro demais a moça linda que escreveu esse artigo e fez
aflorar em mim várias lembranças que eu já havia esquecido. Há casos piores que
o meu, com certeza. Todos os dias cometemos o racismo nosso de cada dia. Do machismo
impregnado em nossos comentários à homofobia em nossos jogos de futebol...
Quando
vamos parar de magoar o outro pra sanar nossas falhas pessoais? Porque o que
odiamos é aquilo que mais está dentro de nós.